Charles Ribeiro Pinheiro
Contemporaneamente, entendemos que a singularidade da literatura vem de sua condição estética, visto que a linguagem, a sua matéria-prima, é trabalhada de maneira criativa (CÂNDIDO [2004], COMPAGNON [1999] e JOUVE [2012]).
A literatura usa a língua como suporte, no entanto não é sua prisioneira, pois subverte as regras gramaticais e o sentido das palavras, inclusive criando novos termos. Ela explora todas as potencialidades da linguagem, fugindo do uso comum da língua, visando significar mais. Através da literatura, o homem expressa as suas angústias, esperanças, sonhos, medos, ideias e paixões. Não exagero afirmar que o tema primordial da literatura é a condição humana, como salienta o pensador francês Jean Paul Sartre (1993).
A literatura tem como principal referente à realidade, porém como fenômeno estético, não tem a presunção de representá-la fielmente. Como nos alerta a professora Leyla Perrone-Moisés, na obra Flores da escrivaninha, "a Literatura parte do real que pretende dizer, falha sempre ao dizê-lo, mas ao falhar diz outra coisa, desvenda um mundo mais real do que aquele que pretendia dizer" (p. 102, 2006). Ou seja, nasce dessa tentativa de expressar a realidade, e quando a autora menciona que ela "desvenda um mundo mais real" (p. 109, 2006), mostra-nos que essa arte nos revela um lado oculto do mundo, algo que ignorávamos.
Além da intenção de comunicar e informar, a linguagem poética é um processo de criação, pois faz uso da imaginação para reconstruir o mundo através das palavras.
O poeta e crítico Décio Pignatari nos afirma que
para o poeta, mergulhar na vida e mergulhar na linguagem é (quase) a mesma coisa. Ele vive o conflito signo vs. coisa. Sabe (isto é, sente o sabor) [...] que a palavra "amor" não é o amor - e não se conforma... O poema é um ser de linguagem. O poeta faz linguagem, fazendo poema. Está sempre criando e recriando a linguagem. Vale dizer: está sempre criando o mundo. Para ele, a linguagem é um ser vivo, O poeta é radical (do latim, radix, radicis = raiz): ele trabalha as raízes da linguagem. Com isso, o mundo da linguagem e a linguagem do mundo ganham troncos, ramos, flores e frutos. É por isso que um poema parece falar de tudo e de nada, ao mesmo tempo. É por isso que um (bom) poema não se esgota: ele cria modelos de sensibilidade. É por isso que um poema, sendo um ser concreto de linguagem, parece o mais abstrato dos seres. É por isso que um poema é criação pura - por mais impura que seja. É como uma pessoa, ou como a vida: por melhor que você a explique, a explicação nunca pode substituí-la. É como uma pessoa que diz sempre que quer ser compreendida. Mas o que ela quer mesmo é ser amada (PIGNATARI, 2005, p. 11-12).
Como ressalta o poeta, a literatura é uma 'poíesis', raiz grega da palavra 'poesia' que significa fazer, criar. O poeta, o escritor literário, é um criador de mundos de linguagem. Aristóteles, em sua Poética, já afirmava que o poeta é um fazedor de mitos, ou seja, narrativas ficcionais. Além do trabalho com a linguagem, o escritor tem a consciência de que está realizando um ato estético por meio da palavra. A literatura remete ao mundo externo, pode tentar representa-lo, simbolizá-lo, recriá-lo, mas constitui outra realidade tecida a partir do ato criador do poeta.
A seguir, leremos um poema do poeta modernista Cassiano Ricardo. A partir de sua análise, discutiremos a matéria da poesia, o fazer literário e suas singularidades.
"Poética" Que é a Poesia? Uma ilha Cercada De palavras Por todos Os lados. Que é o Poeta? Um homem Que trabalha o poema Com o suor do seu rosto. Um homem Que tem fome Como qualquer outro Homem.
Cassiano Ricardo (1895-1974) é um poeta da primeira fase do modernismo brasileiro, oriundo dos avanços e das polêmicas da Semana de Arte Moderna de 1922, em São Paulo. O poema faz parte do livro Jeremias sem chorar, de 1964, uma alusão ao milenar texto bíblico, O Livro das Lamentações, escrito pelo profeta Jeremias. O texto é o poema metalinguístico, pois fala da própria poesia, do ato poético ao indagar "Que é poesia?" e "Que é o poeta?". E como já foi discutido essas questões, que afligem teóricos, linguistas, gramáticos há milênios. Em sua definição, o eu lírico enfatiza o principal elemento que constitui o poema, a palavra. A poesia é comparada a uma ilha cercada de palavras por todos os lados.
Porém, só a existência da palavra não delimita a poesia. Para existir, ela precisa do homem, outro elemento essencial. O homem é o ser que é dotado da capacidade de fazer linguagem, e a partir da linguagem, a poesia. Mesmo a definição de poesia ser efetuada de forma lúdica, quando se refere ao homem, ao fazedor de poesias, o eu lírico destaca o caráter social da literatura, pois o poeta "trabalha o poema com o suor do seu rosto." Em poucos versos, questiona a condição humana ao estar atrelada ao valor do trabalho, pois o poeta, assim como os outros homens, tem necessidade, precisa sustentar a si e a sua família. O poeta não vive apenas da beleza, do sonho, ele precisa viver com o suor de seu trabalho. É um indivíduo que tem, tanto aspirações individuais, quanto lutas coletivas. Portanto, a matéria da literatura são as palavras, mas que dá o seu caráter estético é o homem.
A literatura manifestada em um texto poético concede um lugar especial às palavras, porque a mensagem a ser transmitida vai além da beleza estética, ela será dotada de um poder sugestivo em que os variados sentidos das palavras importam mais do que seu significado principal. O poder de invenção do poeta é pela criação verbal, em que explora todos os recursos da linguagem. O poeta inventa uma nova linguagem em que as palavras têm mais significado e densidade ao invés do seu uso usual. Por isso, a poesia é uma manifestação cultural criativa e inovadora.
Portanto, a literatura aponta o que está faltando no mundo e em nós, não retratando a realidade, mas a deformando e a recriando.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CÂNDIDO, Antônio. "O direito à literatura". In: Vários escritos. São Paulo: Duas Cidades, 2004.
COMPAGNON, Antoine. O demônio da teoria: literatura e senso comum. Tradução Cleonice Paes Barreto Mourão e Consuelo Fortes Santiago. Belo Horizonte: UFMG, 1999.
_______. Literatura Para quê? Trad. Laura Taddei Brandini. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009.
JAKOBSON, Roman. "O que fazem os poetas com as palavras". In: Colóquio/Letras. Lisboa, n. 12, mar. 1973, p. 5-9. Disponível em: https://coloquio.gulbenkian.pt/cat/sirius.exe/issueContentDisplay?n=12&p=5&o=p
________. Linguística e Comunicação. Trad. Izidoro Blikstein e José Paulo Paes. 24ª ed. Cultrix, 2007.
JOUVE, Vincent. Por que estudar literatura? Trad. Marcos Bagno e Marcos Marcionilo. São Paulo: Parábola, 2012.
PERRONE-MOISÉS, Leyla. A criação do texto literário. In: Flores na escrivaninha. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
PIGNATARI, Décio. O que é comunicação poética. 8.ed. Cotia: Ateliê Editorial, 2005.
RICARDO, Cassiano, Jeremias sem-chorar. Rio de Janeiro, José Olympio, 1968.
SARTRE, Jean-Paul. Que é a literatura? Trad. Carlos Felipe Moisés. São Paulo. Ed. Ática, 1993.
SILVA, Victor Manuel de Aguiar e. Teoria da Literatura. 3ª ed. Coimbra: Almedina, 1979.
Comments